Dançando Entre Lírios mortos,Livro de poesias de Marcos Antônio Filho(Fábrica de livros,15 Reais)
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segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Quatro Furos

A descoberta de um dom é abertura da janela mais íntima da sua alma. E eu tive o grande prazer de descobrir o meu entre tantos desgostos em minha vida, o de escrever poesias. Desde moleque eu me expressava assim, para conquistar algumas meninas, desabafar o que eu não podia dizer, viajar por dentro de mim e me perder nas palavras da minha mente. Quisera eu ter todas as minhas poesias reunidas em todos meus cadernos escritos no decorrer da minha vida, mas meu irmão Álvaro as destruiu, ora rasgado em mil pedaços, ora queimando, ora dando aos cachorros comerem, pelo o simples fato de achar poesias coisas de afeminado.

O tempo foi passando, fui crescendo e adquirindo técnicas tanto para as poesias e para escapar da fúria do meu irmão em relação aos meus versos. Fui seguindo o meu caminho, distanciando do machismo de minha família e principalmente de Álvaro e o desejo contido de virar poeta se tornava nítido dentro de mim. Comecei aos poucos a me inteirar sobre como publicar o livro e procurar uma editora, todos os trâmites necessários para eu me tornar um poeta de verdade. Aos vinte e oito anos, eu já era casado, com uma filha e tinha um emprego estável, e tinha um dinheiro sobrando. Consultei minha mulher e ela concordou plenamente, nada melhor para uma mulher em ver as poesias feitas pra ela serem imortalizadas. Eu contactei uma editora e mostrei o meu trabalho. Após uma pequena espera de alguns meses, os editores me retornam dizendo que eles adoraram e aceitaram publicar o meu trabalho mais rápido possível. Era a realização do sonho. A poesia sempre foi uma arte tão marginalizada e subjetiva, e uma editora apostar em um trabalho de um poeta desconhecido como eu era uma dádiva. Senti minha poesia sendo valorizada, me senti valorizado como nunca fora antes pelas as pessoas, principalmente em relação a minha família, que no fundo deviam ter a mesma opinião de meu irmão Álvaro.

Poucos dias antes de fechar o contrato de três livros de poesia no período de cinco anos (contrato e tanto pra qualquer poeta contemporâneo), uma tragédia marca minha família. O meu único irmão Álvaro sofre um grave acidente de carro e fica entre a vida e a morte. Não estava usando cinto de segurança e foi cuspido do carro com o impacto da batida. Vou correndo ao hospital encontro os meus pais e recebo a pior notícia que poderia receber. Meu irmão perdeu as duas pernas e ainda corria risco de morte. Eu fiquei arrasado e entrei em desespero, não sabia como ajudar, eu estava perdido e perplexo diante da fatalidade que me atingiu, senti-me impotente, pois queria ajudá-lo, mas não podia. Nesse momento me apeguei a toda religiosidade que conhecia e prometi a Deus veementemente, que seu meu irmão se salvasse, toda a renda do meu livro seria revertida para ajudar meu irmão em qualquer custo que precisasse, pois já que sem o apoio das pernas, o seu sustento financeiro se tornaria inviável. Rezei fervorosamente para a pronta melhora de meu irmão e minhas preces foram ouvidas. Ele recuperou a consciência, saiu do coma e não corria mais risco de morte. Fui visitá-lo assim que pude. Ele estava desolado, nunca o vira tão abatido. O outrora Álvaro tão cruel e sarcástico em toda vida, agora era carente, dócil e precisando de toda atenção do mundo, um ser humano digno de pena. Ele lamentava:

- O que vai ser da minha vida, meu irmão?

Eu via o desespero da dor nos olhos dele. Um castigo forte demais até para ele, que sempre foi duro e sádico comigo. Passar a depender dos outros pra fazer tudo seria um golpe cirúrgico em seu orgulho e independência adquiridos em todos esses anos. Tentei consolá-lo:

- Você sempre foi forte, meu irmão. Não vai ser nesse momento que você vai fraquejar, né?Eu tenho a certeza que você dará a volta por cima. todos que te amam te ajudarão nessa hora.

- Como conseguirei, pois se para dar a volta por cima eu precisarei das malditas pernas?!

Eu não tive um argumento plausível para usar no momento. Apenas peguei na mão dele com a força que um irmão pode passar para o outro. Fui para a casa muito desolado, tinha que fazer algo para ajudá-lo.Pensei dias e dias em busca de uma solução para o meu irmão, que não fosse trazer as pernas dele de volta, mas pelo menos lhe proporcionar o conforto financeiro pra ele nesse momento trágico. Liguei para os meus editores e contei minha decisão de toda a renda do meu livro ser revertida ao meu irmão. Nem cogitei a hipótese de meu livro ser um fracasso, confiava nos meus poemas, eu sabia que tinha potencial. Eles concordaram de imediato e o quanto antes assinei os papéis do contrato.

Meu livro acabou superando as expectativas e foi muito bem recebido pelo público, diria até com algum sucesso. Como disse, confiava no meu potencial, mas sinceramente não esperava que a minha poesia fosse agradar a tanta gente. Alguns críticos até analisaram meus poemas e deram o os seus avais positivos sobre mim. O bom de tudo isso é que meu irmão não precisa mais se preocupar com dinheiro, já que a renda do livro deu uma ótima grana pra ele, que após a fatalidade se tornou muito mais ajuizado.Álvaro sempre foi muito farrista e promíscuo, conquistador barato e utilizador de entorpecentes, mas agora sempre que vou lá em sua casa, encontro ele orando com a Bíblia junto com a enfermeira. Gostei muito de sua conversão ajudou a superar mais ainda os problemas que passou. Orgulho-me dele estar mudado, por saber usar com a prudência o dinheiro que nele investi.

Faziam seis meses do ocorrido. E Nesse dia eu resolvi sair mais cedo do meu trabalho e fui fazer uma visita a ele. Nesse tempo o nosso relacionamento fraterno tinha melhorado consideravelmente, enfim eu poderia dizer que tenho um irmão. E eu não precisava mais desses cerimoniais de avisar o dia da minha visita, eu queria mostrar uma entrevista minha que havia saído em uma importante revista. Do meu trabalho até a casa de Álvaro são uns 15 minutos de carro, e com o trânsito bom chego rapidamente. O porteiro já me conhece e nem avisa minha chegada. O elevador está a minha espera. Agora são seis andares que são rapidamente percorridos. Um som alto povoa o andar onde Álvaro mora. Será que já não se respeitam mais os doentes?Chego à porta do seu apartamento, pego as chaves que ele tinha me dado. Penso em bater para manter sua privacidade, mas ignoro essa idéia em seguida, pois sei da demora dele em atender a porta, não quero incomodá-lo. Giro a chave e abro a porta. Pareço que abria porta errada, porém não ocorreu nenhum engano meu. O som alto é deste apartamento assim como a orgia generalizada que vejo. Três mulheres nuas, duas se tocando e uma com as pernas abertas em uma mesa e tendo o íntimo acariciado pela a boca do meu irmão. Além disso, garrafas vazias de uísque e conhaque adornam o chão, junto com as roupas de todos. A Bíblia era usada como mesinha para as carreiras de cocaína. Sexo, drogas e bebidas. Tudo com o meu dinheiro, o dinheiro do meu sonho. Eu fico revoltado e espantado com a astúcia do meu irmão em me enganar tão perfeitamente sobre sua conversão. Eu o pergunto:

- Mas o que é isso, Álvaro?

Ele tira a boca do sexo da mulher e me responde:

- Porra isso é uma orgia! Eu como as putas até ficar esfolado!Isso porque eu já enjoei de comer a enfermeira! Muito obrigado por seu dinheiro irmão, você viu agora que ele está sendo muito bem gasto.

- Mas você não tinha se convertido?

- Convertido é o caralho! Só preguei essa peça, pois sabia que você não ia concordar com a maneira que eu gastaria o dinheiro, aí fiz o papel de bom moço. Eu só não pensei que suas poesias de bicha fossem dar tanta grana! Eu tô com o cu cheio de nota!

Gargalhadas de Álvaro e suas meninas. E ele novamente voltou a fazer sexo oral com a mulher da mesa. Ele novamente me humilhou, me fez de palhaço mais uma vez. Ele me atrapalhou de novo. E de repente o afeto que começava a esboçar por ele se incendiou como um ódio incrivelmente voraz. Ele sempre riu de mim, a vida toda zombando e agora vai levar a boa no final de tudo?A suruba seguia e eu fui para cozinha e busquei a faca mais afiada e grande que pude achar. Achei uma ainda na embalagem, que estava escrito: ”ideal para carnes”. Ótimo. Volto à sala com a faca na mão e ninguém percebe devido à excitação e frenesi em que todos eles se encontravam. Resolvi não perder tempo. Rapidamente fui em direção de Álvaro e dei a primeira facada, na altura do pulmão esquerdo. Ele cuspiu sangue na hora, sangue que caiu tudo em cima da puta, que gritou de desespero. Então foi a vez de dar mais três facadas com toda a força que eu podia ter. Na quarta e última, a faca ficou presa no corpo de Álvaro. Mas nem fiz esforço pra tirá-la, pois foi aí que tive a certeza que ele estava morto. O sangue dele foi jorrado por toda a mesa. As putas fugiram nuas, de pânico. E eu pude enfim descansar no sofá e relaxar lendo o meu livro de poesias que ironicamente por ali se encontrava. E nele tinha um autógrafo: para o meu querido irmão...

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